Atores, jornalistas e pesquisadores contam ‘causos’ do tempo em que a televisão era transmitida ao vivo, em tempo real; emissora foi ao ar exatamente há 70 anos.
Não adiantou Dom Paulo Rolim Loureiro (1908-1975), então bispo-auxiliar de São Paulo, aspergir água benta sobre as câmeras da Tupi.
No dia da inauguração da primeira emissora de TV da América do Sul, em 18 de setembro de 1950 — a primeira da América Latina é a XHTV, do México, inaugurada em 31 de agosto daquele ano —, uma das câmeras pifou bem no meio da transmissão. Um técnico norte-americano que estava de plantão no estúdio para qualquer emergência sugeriu que a inauguração fosse adiada, mas o empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), dono dos Diários Associados, não lhe deu ouvidos.
E a transmissão prosseguiu, com apenas duas câmeras.
Mas, os percalços não pararam por aí.
Convidada para cantar o hino da televisão, a cantora Hebe Camargo (1929-2012) não compareceu à cerimônia. Foi substituída às pressas pela apresentadora Lolita Rodrigues. Hebe alegou que estava resfriada, mas, tempos depois, descobriu-se que, no tão esperado dia, tinha um encontro marcado com o então namorado, o empresário Luís Ramos.
No dia de sua inauguração, a programação da Tupi durou apenas duas horas e meia. Começou às nove da noite e saiu do ar às onze e meia. Além da cantoria de Lolita, contou ainda com um discurso do dono da emissora, Assis Chateaubriand — o Chatô, como era chamado — e um sarau com a poetisa Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti (1900-1975), que recitou versos de sua autoria. Terminada a transmissão, a equipe técnica se reuniu para comemorar na Cantina do Romeu, na rua Pamplona.
Lá pelas tantas, Cassiano Gabus Mendes (1929-1993), o diretor-artístico da Tupi e futuro autor de novelas da Globo, como Anjo MauQue Rei Sou Eu? e Tititi, se vira para Lima Duarte e pergunta: “Ô, Lima, e amanhã, hein? Não temos nada para colocar no ar…”.
“Ninguém tinha pensado na programação do dia seguinte”, relata o ator Lima Duarte, hoje com 90 anos, em depoimento ao livro TV Tupi — Uma Linda História de Amor (2008), da atriz Vida Alves (1928-2017). Ali mesmo, Cassiano convocou seus funcionários e pediu a eles que, na manhã seguinte, saíssem à procura de filmes, shows e desenhos pelos consulados da cidade.
Não demorou muito para a Tupi montar sua grade de programação. No dia 27 de setembro de 1950, apenas nove dias depois da inauguração, os leitores dos Diários Associados, império do qual a Tupi fazia parte, puderam saber, em primeiríssima mão, a programação prevista para ir ao ar naquela noite.
“A programação só começava às oito da noite, oferecia apenas sete atrações e encerrava com desenho animado”, revela o publicitário e roteirista Ricardo Xavier, o Rixa, autor de Almanaque da TV (2007).
Ao longo de seus quase 30 anos de história, a Tupi lançou cinco dos mais importantes formatos da televisão brasileira: teledramaturgia (Direito de Nascer), telejornalismo (Repórter Esso), programas de humor (Os Trapalhões), de auditório (Programa Silvio Santos) e infantis (Capitão Aza).
A primeira novela da tevê brasileira, Sua Vida me Pertence, foi exibida na Tupi. Escrita, dirigida e protagonizada por Walter Forster (1917-1996), estreou em 21 de dezembro de 1951 e terminou em 8 de fevereiro de 1952. Cada um de seus 15 capítulos tinha apenas 20 minutos. A novela ainda não era diária — eram dois capítulos por semana. (…)
“Naquela época, você não podia errar. Se errasse, tinha que recomeçar do zero e jogar fora o trabalho de um dia inteiro”, explica o ator Tony Ramos, de 72 anos, que trabalhou por 14 anos na Tupi, onde fez a novela Antônio Maria, de Geraldo Vietri, seu primeiro sucesso nacional.
“Hoje em dia, não. Com o corte eletrônico, você continua de onde errou. Mas, antes do VT, a gente olhava um pro outro, suando em bicas, com medo de errar. Quando errava, o jeito era improvisar e seguir adiante”, relata. Para não esquecer o texto no meio de uma cena, os atores recorriam aos mais diversos truques. O mais famoso deles ganhou o apelido de “dália”.
O ator Fregolente (1912-1979) era um dos que tinham o hábito de “camuflar” as páginas do seu roteiro pelos móveis do cenário. Um dia, o contrarregra trocou uma toalha de mesa e levou um vaso de dálias junto. Na hora da transmissão, quando notou que a “cola” não estava no lugar onde havia deixado, bateu o desespero: “Meu Deus, as minhas dálias! Onde estão as minhas dálias?”, berrou o ator.
Fregolente não foi o único a passar apuros. Nem as garotas-propaganda escapavam. Isso porque, além dos programas, os comerciais também eram ao vivo. Volta e meia, um ferro elétrico soltava fumaça, a porta de uma geladeira teimava em não abrir e a enceradeira saía “correndo” pelo estúdio.
“Se algo desse errado, tinha que saber consertar. Muitas não sabiam e, mortas de vergonha, caíam no choro”, relata o jornalista Rodolfo Bonventti, da Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira (Pró-TV).
Morrer de vergonha porque o eletrodoméstico deu piti no palco não é nada. Pior é quando o ator sofria um “acidente de trabalho” e, apesar de ferido, continuava em cena.
“Em um teleteatro, o ator Carlos Duval (1936-1993) foi esfaqueado por um colega. Noutro, o ator Jaime Barcelos (1930-1980) teve a perna esmagada por uma carruagem. O que fizeram? Continuaram atuando, como se nada tivesse acontecido. Quando suas cenas chegaram ao fim, foram levados ao hospital”, relata o jornalista Thell de Castro, fundador do portal TV História e autor do Dicionário da Televisão Brasileira (2015).
‘O Brasil parou para assistir a Beto Rockfeller’
Se Sua Vida me Pertence é a primeira produção do gênero no Brasil, Beto Rockfeller é considerada a mais inovadora e revolucionária de todas. Ao contrário dos folhetins de capa e espada, o linguajar de Beto Rockfeller era coloquial e a interpretação do elenco, despojada.
Méritos do escritor Bráulio Pedroso (1931-1990) e do diretor Lima Duarte. Protagonizado por Luiz Gustavo, Beto Rockfeller contava a história de um jovem de classe média que, para ingressar na alta sociedade paulistana, se faz passar por um ricaço americano.
“Além de romper com o padrão dos melodramas latinos, passou a contar as histórias de um jeito brasileiro, com poucas cenas em estúdio e muitas gravações em externas”, explica o jornalista José Armando Vanucci, coautor de A Biografia da Televisão Brasileira (2019).
Beto Rockfeller fez tanto sucesso que influenciou até a TV Globo. A maior influência pode ser percebida na novela Véu de Noiva, escrita por Janete Clair (1925-1983), que decretou o fim na rede Globo da “Era Glória Magadan (1920-2001)” — a escritora cubana por trás de dramalhões como Eu compro esta mulherO sheik de Agadir e A rainha louca, entre outros.
“Influenciamos tudo: da moda ao vocabulário”, orgulha-se Luiz Gustavo, de 86 anos. “O Brasil parou para assistir a novela”.
Nem só de telenovelas era feita a programação da Tupi.
A emissora apostou também em seriados: infantis, como O sítio do pica-pau amarelo, adaptado por Tatiana Belinky (1919-2013); românticos, como Alô, doçura, protagonizado pelo casal John Herbert (1929-2011) e Eva Wilma; e de aventura, como O vigilante rodoviário, estrelado por Carlos Miranda. Só Alô, doçura, criado por Cassiano a partir do americano Love Lucy, permaneceu no ar de 1953 a 1964.
“Já naquela época, o assédio do público era grande”, recorda Eva Wilma, de 86 anos. “A vantagem é que, em vez de selfies, os fãs pediam autógrafos”, brinca. Muitos foram os astros e estrelas que, a exemplo de Lima Duarte, Tony Ramos e Eva Wilma, estrearam na Tupi: Fernanda Montenegro, Nathália Timberg, Antônio Fagundes, entre outros.
A formação definitiva de Os Trapalhões, com Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias, também surgiu lá. O quarteto estreou seu programa na emissora em 1974, mas, três anos depois, foi contratado pela Globo. “Recém-chegado do Ceará, a Tupi foi muito importante para a minha carreira. Só passei a ser conhecido nacionalmente depois de fazer programa lá”, admite Renato Aragão, de 85 anos.
Para comemorar os 70 anos da Tupi, os jornalistas e pesquisadores Elmo Francfort e Maurício Viel estão lançando TV Tupi: Do Tamanho do Brasil (2020), o primeiro de três volumes.
Entre outras curiosidades, Francfort revela que a história que alguns pioneiros contam de que não havia aparelhos de televisão em São Paulo para transmitir a inauguração não passa de lenda urbana. Segundo algumas versões, Chatô teria até contrabandeado cerca de 200 receptores.
“No dia 18 de setembro de 1950, já tinha televisão até sendo vendida em lojas. Além disso, as famílias mais ricas tinham trazido seus aparelhos do exterior”, explica.
Já Viel relata que, a poucos anos de seu fechamento, a Tupi também sofreu com a ditadura militar. Uma participação-surpresa de Dom Paulo Evaristo Arns, na novela O profeta, de Ivani Ribeiro (1916-1995), despertou a ira dos militares. Nela, o então cardeal de São Paulo fazia duras críticas às atrocidades cometidas pelo regime contra presos políticos.
“No dia seguinte, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) foram até a emissora para apreender a fita do capítulo e levar o diretor, alguns funcionários e até Dom Paulo Evaristo Arns para prestar depoimento.”
A Tupi foi retirada do ar no dia 18 de julho de 1980, dois meses antes de completar 30 anos. Sua última novela foi Como salvar meu casamento, escrita por Carlos Lombardi. A 20 capítulos do final, deixou de ser exibida.
“Quando o Chatô morreu, em 1968, não deixou um herdeiro. Não havia ninguém que soubesse administrar aquele império, formado por rádio, tevê, jornal e revista”, observa Bonventti, do Pró-TV. “O problema da Tupi foi má administração mesmo.”
Parte de suas emissoras foi dividida entre os empresários Silvio Santos, que criou o SBT em 1981, e Adolpho Bloch (1908-1995), que fundou a Manchete em 1983.
A sede da emissora, um edifício em um dos pontos mais altos da capital paulista, no bairro do Sumaré, foi depois ocupada pela MTV e tombada em 2012.
Do acervo da Tupi, sobrou pouca coisa: sete capítulos de Beto Rockfeller, a primeira luta profissional de Cassius Clay (1942-2016), o futuro Muhammad Ali, em 1960, e até uma palestra do jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977), de 1967.
“Além do fato de as fitas serem caras, o pessoal não tinha ideia de que estava fazendo história. Conclusão: gravava um programa por cima do outro e, depois, vendia as fitas por ninharia. É uma pena. A produção audiovisual ajuda a contar a história de um país”, lamenta Vanucci. ( por: Terra )

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